Ganhei de meu pai, aos seis anos, em 1.980, a minha primeira bicicleta. Pequena, de segunda mão e de cor verde. Segunda mão porque ela já tinha sido de outra criança. E agora, antes de redigir qualquer outra coisa, penso: quem foi o seu primeiro dono ou dona? Quem foi, o menino ou a menina, que “estreou” a minha bicicleta? Será que soube aproveitá-la como eu a aproveitei? Se bem que cada pessoa aproveita de um jeito. E isso não quer dizer que o meu jeito é melhor do que o jeito de qualquer outra pessoa. Muito pelo contrário. O jeito é único, singular, pessoal. E o verbo aproveitar não significa, no sentido pejorativo, tirar proveito ou lograr. O aproveitar vem de proveitoso, que dá prazer, traz felicidade.
Para meu pai, acredito que foi um dos dias mais felizes de sua vida. Era nítida a felicidade em seu rosto moreno, queimado pelo sol enquanto trabalhava na lavoura e na construção civil. Homem magro, miúdo, franzino, calado. Um silêncio nos lábios e nos olhos nostálgicos que se resguardavam enquanto ouvia suas modas no rádio. Talvez por isso tivera seu problema de coração agravado. Naquela época trocava-se a palavra doença por problema. Como se fosse um defeito numa máquina ou uma equação a ser resolvida.
E para ele a bicicleta também tinha uma simbologia muito forte, além, é claro, de ser o seu transporte para o trabalho, melhor: para qualquer lugar. Para homens como o meu pai, a bicicleta tinha muito mais uma função social e de lazer do que de transporte. Quem tinha uma “Monark Barra Forte” possuia algo muito precioso. A minha também era uma Monark e, depois que busquei no Google, descobri que era modelo Monareta Aro 14.
Foi num sábado, logo após o almoço. Meu pai me chamou para sair com ele. Não me disse aonde iríamos. Subimos o morro para atravessar a BR que dividia nosso bairro e aquele onde ele comprou a minha bicicleta.
Entramos por uma porta. Um silêncio. Uma entrega do dono da oficina nas mãos do meu pai. Lá estava ela: verdinha, grande e cheia de aventuras. Grande para meus olhos pequenos. Cheia de aventuras porque para criança bicicleta significa liberdade.
Saímos de lá para nossa casa. Eu empurrava a bicicleta e ela me empurrava. Hora de voltar a subir o morro da BR. Muito esforço e alguns escorregões na terra seca, batida, chão duro. Morro subido. BR atravessada.
Avistei nossa casa que ficava numa esquina em frente a um quarteirão inteiro: um vazio de casas e um cheio de possibilidades. Era o famoso campinho: um lugar onde os adultos jogavam futebol nos fins de semana. Claro que nós, as crianças, também aproveitávamos o campinho, mas como já disse: cada um do seu jeito.
Atravessada a BR, agora bastava descer o outro morro. E lá fui eu! Desci de uma vez só, num supetão, sem breque. Nesse tempo um mineiro não dizia freada. A gente pisava no breque. Um susto e uma risada. A última do meu pai, o susto foi meu. Mas quero voltar a falar desse assunto mais à frente. Porque agora quero contar das aventuras do Zé e a sua bicicleta.
Os dias não foram fáceis e para ser bem honesto, não foram sem dores. Machucados nos joelhos eram sinônimos de “salim mamãe, salim”. Minha mãe era daquelas mulheronas fortes, duronas, impetuosas, garradeira – do verbo agarrar. Não dava mole. E como mulher de roça que foi, aprendeu suas próprias receitas para curar qualquer “ralado”. O sal de cozinha com uma pitada de água ou saliva se combinavam numa dessas misturas curandeiras, seu mertiolate natural.
Assim, para cada um dos meus tombos, ela preparava e colocava nos meus machucados essa solução dolorosa e, ao mesmo tempo, aliviante. Alguns dizem que o uso do sal nos ferimentos vem de resquícios primitivos. Os escravos ao levarem chibatadas nas costas, eram banhados com a água do mar (que tem sal) para facilitar a coagulação do sangue. Dessa forma, voltavam mais rápido ao trabalho. Também li no Google. Ah! Esse Google…
Encerrando esse assunto salgado, o fato era que assim como para os escravos, o sal me curava mais rápido para, novamente, aprender a conduzir a bicicleta.
Vai, sobe de novo! Ce num vê: os jogador de bola cai e levanta de novo e num fica chorano não. Anda sô. Dêxa de sê mole!
Essas palavras de minha mãe, sem ardor, foram mais que encorajadoras, uma solução curativa. Por isso, eu subia! Sem rodinhas, aprendi a andar de bicicleta.
Sei que em alguns momentos a gente sobe uns morros de chão duro, apisoado. Chão que machuca, morro íngreme. Depois que a gente sobre, vê algo que nos enche, nos preenche. Como não dá para ficar vendo de longe – e a gente sabe, precisa, deseja e quer ir para chegar mais perto, sentir – descemos o morro. Descemos sem brecar ou então brecamos demais. Às vezes não soltamos o breque quando se deve deixar fluir, correr solto, ir leve.
Tenho pensado nas vezes que, por medo do morro, brequei demais. Por medo não do morro de terra, mas do morro do verbo morrer.
Quando não soltamos o breque, vivemos só um “tiquinho” da emoção. Vivemos só um “cadinho” da beleza daquilo que vimos lá de cima do morro. Se não soltar, não vai sentir.
Também sei que dá para aprender a andar, viver sem as rodinhas. E penso que sem elas o aprender é mais emocionante, empolgante, aventureiro, instigante. As rodinhas são nossas muletas sobre rodas, nos impedindo de caminhar e pedalar com “as próprias pernas”.
Por vezes, queremos que alguém seja nossas rodinhas, faça as coisas por nós. Desse jeito não dá para se emocionar com a subida e descida do morro.
E com as rodinhas a gente não cai. Então, perdemos a chance de aprender com o poder curativo do sal, depois de alguns tombos. Com as rodinhas, a gente não cresce, se torna uma eterna criança que, por não cair, não sabe se levantar e seguir adiante.
Quanto à risada do meu pai por eu não ter brecado… Acredito que tenha sido o jeito dele expressar o susto de saber que seu filho estava indo, sem rodinhas, sem frear… mesmo que empurrando a bicicleta.
CRÉDITO DA IMAGEM:
Imagem de Karolina Grabowska por Pixabay, URL: https://pixabay.com/pt/photos/homem-menino-mantenha-explora%C3%A7%C3%A3o-791548/