Browsing Category

VIVENDO E APRENDENDO

Neste espaço, conto o que aprendi vivendo. Trazendo para o presente as histórias passadas, resgato minhas memórias e as lições que a vida me presenteou e presenteia, diariamente. Espero que elas sejam úteis, inspiradoras e levem conforto e alegria. Mais que isso, te inspirem a viver corajosamente.
Nada é mais valioso que viver e reconhecer nossos aprendizados – quaisquer que sejam – como fontes de crescimento e maturidade.

VIVENDO E APRENDENDO

PACIÊNCIA

Lola e Lucília têm muitas coisas em comum.

A paciência é uma delas. Lucília, nem tanto. Lola, muita!

Quando se trata de paciência e amor aos maridos, ah elas são primorosas, resignadas, apaixonadas. Submissas, igualmente.

Lucília, minha mãe e esposa de José Gomes – meu pai. Não era atriz, mas seus atos dramáticos certamente cairiam como uma luva nas produções mexicanas.

Lola, esposa de Júlio na novela Éramos Seis, interpretada por Glória Pires. Um espetáculo de atuação que acompanhei durante os primeiros meses de Pandemia, enquanto trabalhava de casa.

Acompanhei ouvindo, bem no estilo anos 20 quando ainda não havia televisão e época abordada para a narrativa da novela.

Duas mãos no teclado, olhos na tela do computador e ouvidos no áudio do aplicativo GloboPlay. Seria um merchandising? Não, pois não recebi nenhum conto de réis pra isso.

E funciona, viu! Mesmo perdendo algumas cenas marcantes; daquelas interrompidas pelo intervalo: momento em que eu “voltava” o vídeo pra ver o que só foi escutado.

Durante o jantar, Lola recebe um envelope de Soraia, sua nora, esposa de Julinho – o penúltimo de seus quatro filhos que assim como o pai, trabalhava na loja de tecidos do Sr. Assad.

Surpresa, Lola abre o envelope com sutileza, sem pressa, e vê uma passagem de trem para São Paulo: um bota fora, um convite a pegar seu banquinho e ir saindo de fininho – como diria o Raul Gil.

Paciência estampada em um agradecimento paciente, desconcertado, tímido; de quem sabe que o tempero da presença estragou o prato, azedou o paladar. Daquelas situações que nos engasgam, dão nó na boca do estômago, pedem bicabornato ou chá de boldo.

Paciência, do Latim patientĭa, capacidade de resistir, suportar. Acredito que deveria compor o currículo escolar, porque os dias têm nos exigido tantas Lola e Lucília, comportamento que as empresas – até mesmo as brasileiras – chamam de soft skills. De soft, penso, não têm nada! São hard mesmo!

Acredito ser mais fácil aprender programação, uma hard skill, do que paciência. Porque paciência requer ser, desprogramar a submissão que engasga e nos impede de engolir até sopa. Imagina os sapos que nos são servidos diariamente, do café da manhã até o jantar.

Paciência a gente aprende abrindo um envelopinho aqui, outro ali. O primor está em não abrir todos de uma só vez, apaixonar-se com o que temos pra hoje e por hoje. É saber que a gente pode colocar intervalos, interromper o fluxo quando desejarmos voltar pra escutarmos de novo, vermos de novo, vermos e escutarmos – pacientemente – como se fosse a primeira vez.  

Devemos ter um banquinho. Não para pegá-lo e sair de fininho, mas pra gente assentar e suportar, resistir, esperar com resignação o dia da partida do trem. Afinal, “o tempo não para”, cantou Cazuza; e “o trem que chega é o mesmo trem da partida” – poetizou Maria Rita, filha de Elis Regina.

Vai cair como uma luva se tivermos uma sutileza de companhia durante a viagem; e sermos também. Senão a gente acaba sendo o excesso de tempo na vida do outro. A sabedoria nos mostra que é melhor sermos bicabornato e chá de boldo, Lola, Lucília… quando os dramas da viagem embrulham o estômago.

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de Freepik: Flor foto criado por jcomp – br.freepik.com

VIVENDO E APRENDENDO

VAI DEVAGAR

Pois é, eu parei. Não segui esse conselho da minha mãe, dado amorosamente quando eu estava ansioso e aflito. Aflição da juventude apressada.

Parei de atualizar o meu blog e ir às aulas de teatro. Sequer deu tempo de participar com short da segunda aula – como eu tinha aprendido ao vestir calça jeans na primeira.

Parei com o curso de teatro também – aqui é aquele momento em que a gente justifica uma atitude usando as próprias palavras e aprendizados. Neste caso, no post Desconstruir, quando afirmei: a evolução é diária, sempre!

Levei mesmo a sério o meu próprio aprendizado: a gente pode evoluir sem pressa, sem arrancar os cabelos – já que não temos pena e bico como as águias que, segundo os contos disponíveis na internet, se autoflagelam para voltarem renovadas. Isso está no mesmo post, Desconstruir. De forma alguma a repetição é intencional, forçando a leitura do dito cujo, publicado em agosto de 2019. Porém, eu recomendo! Pronto, o “jabá” está feito!

Sabe quando o coração deseja, a mente grita, o corpo pede e a alma atende? Sou obediente. Parei mais um tiquim de coisas.

Não fui devagar. Puxei o freio de mão numa descida, com direito a cantada de pneu, fumaça,  cheiro de borracha queimada, muita poeira e pedregulho. Um super cavalo de pau! Graças a Deus, não capotei! Seria perda total; e a vida é muito valiosa pra ser parada abruptamente.

A vida precisa ser vivida como minha mãe sabiamente disse: devagar, com tempo para chupar cada ossinho da costela ou pescoço da galinha! E até de vagando, por que não?

Querida mãe, aprendi que em muitos momentos precisamos de um freio ABS para aquelas ocasiões em que reduzir a marcha é insuficiente pra chupar esses ossinhos.

Parei de ir à academia, de regrar minhas comidas preferidas – aquelas bem engordativas. Parei de ficar “quase sem barriga” e, adivinha? A barriga não parou de crescer! Essa, por sinal, nunca para! É uma senhora sem limites! Adora chamar a atenção só pra ela! Egóica e gulosa.

Parei uma relação de dez anos. Por amor demais, não fui devagar. Parei. Parar é quando a gente sabe cuidar da gente, sobretudo, do outro. Parar é dar passagem, permitir a ida, deixar seguir viagem.  

Saber quando e por qual motivo parar é agir com generosidade, prudência, desapego, responsabilidade. Entender que a nossa velocidade, mesmo baixa, pode atropelar, ferir.  

Parar para respirar, sem ajuda de respiradores. A vida – se é que posso responsabilizá-la por isso – acabou nos ensinando a duras penas e perdas a irmos devagar, quase parando. Parando.

A gente usa clichês como, por exemplo, “a vida, o destino, a sorte” e tantos outros quando nos falta conhecimento para explicar, além daquilo explicado pela ciência, e temos crenças fincadas no oculto, na espiritualidade, no místico, no por vir, no sagrado.

Muitas vidas foram sufocadamente paradas. “Morreram no seco”, como ouvi outro dia em um vídeo no YouTube. Vidas que não queriam, penso, serem paradas por esse cavalo de pau chamado Covid-19.

Vidas que queriam mais tempo pra chupar todos os ossinhos de frango e até os caroços de azeitonas nas macarronadas aos domingos! Chupar cada gotinha de água gelada num dia quente, até escutarem aquele som que sai do canudinho quando não há mais nada a ser sugado!

Vai devagar! Muitas vidas se foram vagarosamente. Menos sofrido e entristecedor se tivessem ido apressadamente. Teriam ficado bem menos na sequidão de uma vida ser ar.

Volto a redigir, devagar, refletindo acerca desses dois últimos anos de Pandemia. Dias de parada obrigatória, sinal vermelho quando temos pressa de ir devagar mesmo.

Confesso que para mim essa parada – jamais desejada por seu impacto devastador – me descansou o pé direito afundado no freio.

Vai devagar! Soltei o freio de mão que eu vinha segurando há um tempo.

Soltei a embreagem. Vivi o ritmo daqueles dias – e desses que ainda teimam em estar presentes – devagar e de vagando: sem rumo, mascarado, “sem lenço e sem documento, nada no bolso ou nas mãos…” – como cantou Caetano Veloso.

Eu segui e sigo vivendo. Tomei Coca-Cola e me consolei ouvindo inúmeras canções, assistindo a séries e novelas. Continuo com essa prescrição irremediável; acrescida com pão de queijo, bolo e café. Agora, sem ansiolítico.

Há dez palavras quando neste texto. Porque devemos saber quando ir devagar ou parar.

Vai devagar. Estou indo e até parando. Embora, com uma pressa só!

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de Freepik: Fundo foto criado por jcomp – br.freepik.com

VIVENDO E APRENDENDO

DESCONSTRUIR

Corri de um lado para o outro da sala, cai, desci em espiral abraçado com várias pessoas nunca vistas antes, olhei fixamente nos olhos de outras tantas enquanto dançávamos. Sim, fiquei um pouco desconcertado. Coisa de mineiro, será?

Até inventei uma dança só minha com meus movimentos pouco flexíveis pelas “juntas enferrujadas” deste senhor a beira dos quarenta e seis anos de idade. Porém, sem falsa modéstia, com o coração de um “mininu” a brincar no recreio da escola, correr depois de tocar a campainha da casa dos outros ou assistir a um capítulo da série Once upon a time.

Pois é, entrei num curso de teatro. E quer saber? Está sendo desconstrutiva – respondi ao professor a respeito da primeira aula.

Poderia ter sido mais, se não fosse a calça jeans atrapalhando um pouco e me matando de calor. Precisei dobrar as barras e beber um gole de água pra acompanhar a moçada no auge dos seus vinte e poucos anos. Gente do bem, agradável, acolhedora. Aprendi vivendo, na próxima aula irei de short.

Desconstrução. Escolhi enquanto estava deitado no escuro – retomando o ritmo da respiração – e olhando o exaustor do teto a girar “devagarzim”, infinitamente mais lento que o giro do mundo lá fora e da minha cabeça. Essa, coitada, antecipava as inúmeras leituras a serem feitas acerca de teatro, as possíveis peças para encenar, os exercícios preparatórios das aulas seguintes, entregas dos próximos seis meses de duração do curso e o teste final.

Enfim, eu estava meticulosamente colocando tudo numa planilha mental, organizando cada “coisinha” no seu devido lugar. Me senti aliviado pela conquista estrutural! O pensamento funciona assim para quem, como eu, foi forjado por décadas na vida corporativa.

Luzes acessas. Me aprumei pra ir ticando a fala do professor com as “coisinhas que eu havia colocado nos seus devidos lugares”. De repente, nada. O vazio. Não tiquei nada!

As próximas aulas seguiriam conforme o desenvolvimento da turma, falou pausadamente nosso orientador.

E o teste final? Seria minha indagação. Não precisei fazê-la, pois a resposta veio na sequência: também seria conforme o desenvolvimento da turma.

Não tinha nada errado ali. Não faltava planejamento e as coisas estavam onde deveriam estar. O plano seria construído conforme a capacidade da matéria prima mais valiosa: as pessoas e o talento delas. Quer coisa mais bem planejada, humana e respeitosa?

Na minha concretude de pensamento corporativo, só consegui me lembrar da Vida líquida de Baumam. Então, como dizemos aqui em Minas, enfiei a viola no saco e fui embora. Enquanto caminhava pelos seis quarteirões até chegar à minha casa, fiz o que deveria ser feito: refleti e fui deixando os passos diluírem e desmontarem minhas pecinhas da vida “esquematizadinha”.

Desconstruir é isso mesmo: desmontar as pecinhas e misturá-las pra criar outra coisa, sem, no entanto, eliminar as experiências e aprendizados anteriores. Afinal, são ricas referências pra gente fazer diferente: nem melhor ou pior, nem certo ou errado. Só diferente.

Outra lembrança: a metáfora da lagarta – figurinha batida em palestras – pra exemplificar o processo de transformação, mudança e evolução: feia, gosmenta e rastejante se transforma numa linda, colorida e livre borboleta.

Cortella, em uma de suas palestras deliciosas, disse: nem sempre evoluir é algo, digamos, interessante. Quando, por exemplo, o médico nos informa: o paciente evoluiu para óbito.

No caso de morte, mesmo a pessoa não tendo sido lá “boa gente”, é comum escutarmos: “fulano descansou, partiu dessa pra melhor ou foi morar na trinca dos anjinhos de Nosso Senhor”. Se for assim, evoluir nos leva a uma fase nova, descansados e renovados.

Por outro lado, quem de nós quer mesmo partir dessa pra melhor? Fico aqui pensando se a lagarta está tão a fim de virar borboleta. A coitada fica lá, presa num casulo por quase um ano, espremida e apertada até conseguir sair pra viver como borboleta, tão somente, trinta dias. Vale o esforço?

Vale! A gente, assim como a lagarta, sempre quer passar dessa pra melhor. Não no sentido de precisar morrer, mas de aprender mais, crescer, alcançar mais sabedoria, colecionar histórias e compartilhá-las. Ser mais leve pra flutuar em vez de se arrastar. Podemos fazer isso “vivinhos da silva” – mais uma expressão da adorável Minas Gerais.

Desconstruir leva tempo, bem mais daqueles nove meses da lagarta, pois exige humildade, consciência, um querer profundo, atitude e ação, desapego, um constante recomeço, passar pelo fogo. Rubem Alves foi quem narrou no seu texto sobre o processo do milho – duro e cascudo – se transformar em pipoca. Só há pipoca, macia e saborosa, porque o milho passou pelo fogo.

Há quem dirá: a desconstrução é dolorosa. Talvez, até a comparem com a autoflagelação da águia que, para se manter vigorosa, arranca pena por pena e ainda bate o bico velho nas rochas até quebrá-lo. Ah, é muita dor!

A gente pode evoluir sem pressa, sem arrancar os cabelos já que não temos pena. Sem quebrar “a cara” já que não temos bico.

A gente pode evoluir com mais alegria por saber que existirão logo a frente mais jardins e flores, dias mais coloridos em vez da escuridão do casulo.

Estou contando os dias para a próxima aula e o retorno pra casa, quando poderei desconstruir mais pecinhas e, quem sabe, comer pipoca enquanto assisto a mais um capítulo de Once upon a time. Estou encantado com a evolução da Regina, a Rainha Má.

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de SEPTIYAN SOEMANTRI EM PIXABAY, URL:  https://pixabay.com/pt/users/septiyan-1511088/

VIVENDO E APRENDENDO

CASA

Não tiro uma vírgula do que Lena Gino narrou em seu texto, Casa arrumada. Casa não pode, de jeito nenhum, ser um “centro cirúrgico, cenário de novela”. Não tiro porque não tem jeito. A Casa é dela. Se eu tirar, desarrumo a Casa e ela perde a essência da Lena.

A casa da gente revela quem somos, nossa dinâmica. Conta como nos relacionamos com quem a compartilhamos, com quem vive nela com a gente. Sim, há também casa de uma pessoa só. E, obviamente, não deixa de ser casa por isso.

Propositalmente usei a palavra vive porque, para mim, casa é para viver. Não é só para morar.

Moradia é um espaço físico, feito do mais duro concreto, lugar objetivo, realista, frio, opaco. Casa é subjetiva, tem cor, vida e calor porque há gente nela que a constrói diariamente por meio de suas histórias, dilemas, sonhos, frustrações, alegrias, tristezas, encontros, desencontros, afetos, desafetos e outro monte de emoções, sentimentos, formas de agir e experienciar o existir – essas linhas que vão tecendo, pontinho a pontinho, o nosso enredo por aqui.

Moradia nos abriga. Casa nos nutre, revigora, dá sentido de existência, identidade e significado. Há moradias que serão sempre moradias. Nunca serão casas. Falta-lhes o coexistir, conviver, a compreensão, compaixão das pessoas as quais se percebem tão somente como moradores, habitantes.

Triste saber que há moradias gritando para serem casas.

Centro cirúrgico e cenário de novela são moradias. A gente passa por lá, mas não vive lá.

Casa é onde a gente se senta junto e assiste a novela. Onde fazemos uma prece por quem amamos, para que saia logo do centro cirúrgico e volte pra casa.

Vivi em algumas. No quarto de uma delas tinha um vitrô com grades pintadas em cor laranja, um dos modelos mais simples, com vidro canelado. Eu tinha sete anos e via, através dele durante a noite, um monstro enfurecido e seus vários braços – na verdade, apenas a sombra do balanço dos galhos do pé de limão de nosso quintal. De placa de cimento e apenas quatro cômodos: dois quartos, cozinha e banheiro. Foi lá que mais gostei de viver porque o tamanho pequeno encurtava meus passos e aproximava nossa família. Nuns dois pulos eu praticamente a cruzava de um canto a outro.

Na minha adolescência, vivemos numa moradia não acabada. Alguns vitrôs, sem vidros canelados, foram criativamente “envidraçados” com papelão. Empilhamos tijolos em outros buracos por não termos dinheiro para, sequer, comprar o vitrô. Se tornaram barricadas. Não entrava frio. Não entrava luz. Não entrava chuva. Não entrava vento.

O contrapiso esperou muitos anos até ser promovido a piso; e daqueles de um amarelo só. A cobertura, sem laje, em telhas de segunda mão ou como dizem em lojas de automóveis: seminovas.

Para se tornar casa, a moradia precisa ser acabada?

Lembro, neste instante, do livro Que ninguém nos ouça de Leila Ferreira e Cris Guerra – autoras nas quais me inspiro. Num dos e-mails trocados entre elas, a Leila comenta a respeito de casa: “…casa integra, casa enraíza, casa faz pertencer…”

Se por um lado não entrava nada na moradia não acabada, por outro também não saia. Não saia o afeto da nossa família, o aconchego, o cheiro do café coado no coador de pano e do alho na banha refogando o arroz, o chiado da panela de pressão enquanto cozinhava preguiçosamente o feijão, a música sertaneja tocada no rádio do meu pai desde o amanhecer até o fim do dia, o estalar da brasa assando o bolo de fubá. Estava tudo enraizado, integrado, pertencido.

O que enche uma moradia são os móveis. O que constrói uma casa é o viver, a vida vivida nela. Lena estava mesmo certa ao dizer “…eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: aqui tem vida…”

Por isso, talvez a moradia deva – metaforicamente – ser acabada, destruída para que uma casa seja erguida. Se não fizermos isso, corremos o risco de ter uma “casa de fachada”, daquelas de novela, empilhadas com o novo sofá, a cozinha mais equipada com varanda gourmet, aquele quadro na parede que nem conhecemos o artista; uma tv gigante, 4K, seis entradas HDMI e tudo conectado pela tal internet das coisas. E, aliás, das coisas mesmo. Porque gente não se conecta, não se pluga. Gente se relaciona etc. Coloco etc porque a lista seria enorme.

A gente precisa empilhar a casa é de gentileza, desde a hora que colocamos o pé do chão. Precisamos empilhar a casa com respeito a quem vivem nela e a constrói com a gente. Precisamos empilhar a casa com a capacidade de escutar através do coração, partilha, naquele olhar que silenciosamente compreende, no abraço que acolhe sem ressalvas, na amizade que não exige nada em troca. Precisamos empilhar a casa com mais sorrisos despretensiosos, os mesmos de quando tínhamos sete anos de idade. E, sem hipocrisia, o bom mesmo é quando a gente consegue empilhar tudo numa casa só: nosso ter e ser. É poder viver e morar na justa medida!

Tem gente muito mais feliz morando num barraco onde é possível cruzá-lo de um canto a outro num pulo, do que quem mora em mansão e não consegue – ao menos uma vez por mês – entrar em alguns cômodos. O contrário também é verdadeiro. Viver e morar é isto. Eu, contudo, ainda prefiro viver.

CRÉDITO DA IMAGEM

Foto que tirei de uma das ruas de Tiradentes, cidade singular de casas e gente cheias de vida.

VIVENDO E APRENDENDO

AMONTOADO

Tarcísio, um vizinho, nos socorreu com uma prateleira.

Um balcão carunchado, baleiro com tampas amassadas, freezer de segunda mão, umas poucas dúzias de cachaça e refrigerantes. Um punhado de vassouras em capim, alguns rolos de papel higiênico, latinhas de extrato de tomate, sardinha e salsicha; e outras coisas as quais agora não me lembro – todos emprestados pelo tio Antônio, irmão da minha mãe e dono de um armazém num bairro próximo ao nosso.

Esse amontoado de trem – como falamos em Minas – compunha o nosso empreendimento, além da boa vontade e, talvez, uma mistura de medo e alegria dos meus pais com o novo ganha-pão.

Aos sete anos comecei minha carreira de caixeiro e como dorminhoco num banquinho de madeira. Fui acordado muitas vezes pela braveza da minha mãe ou pelo entregador de refrigerantes. Para criança, não há hora e lugar de dormir – ainda mais se o sono for embalado por desenho na tv.

No início, uma vendinha. Depois, um boteco. Lá, aprendi a subtrair e “dar o troco”. Me senti tão adulto.

Limpei chão, um piso de cimento queimado, colorido de amarelo, encerado e lustrado. Um brinco! Lavei banheiro e muitos copos, varri calçada e tirei muita poeira vinda das ruas sem asfalto e do campinho: um quarteirão inteiro de vazio onde hoje é a praça do bairro. Na época, o campo de futebol e lugar onde eu andava de bicicleta, minha máquina do tempo, brincando de viajar para o futuro e passado.

Enquanto limpava o bar, ouvia músicas no rádio do meu pai e, nas enxaguadas do pano, parava as mãos debaixo da torneira e bebia água fresquinha. Uma fartura só!

O amarelo tímido das manhãs, corriqueiramente entrando pela janela do quarto, amanhece em nós a oportunidade de recomeçar com o nosso punhado de coisas ou que, gentilmente, nos foi emprestado.

Nesse mundo, há quem acredita na gente e tem boa vontade a ajudar. Mas, convenhamos, a mãozada de água mais saborosa é àquela bebida após o dever cumprido, das responsabilidades entregues, do trabalho executado. E tem música melhor a embalar nosso sono?

Impossível sentir a alegria sem passar pelo medo que, na verdade, é a prudência pedindo sensatez e coragem de ser adulto – ter maturidade e não só idade. Quando aprendemos o sentido de dar o troco: devolver o dinheiro em vez de pagar na mesma moeda.

Pela falta de coragem e sensatez, corremos o risco de nos acomodarmos com a dureza do banquinho e vivermos uma vida em preto e branco, sem produzir nada com nosso amontoado de trem, pois acreditamos ter pouco para agir. Decidimos dormir um pouco mais ou esperar por socorro e, então, vivemos no passado ou futuro, sem viver o presente. Só nos damos conta que o agora passou porque levamos um susto ao ver nossas coisas carunchadas e amassadas, ao sermos acordados pela braveza do tempo. Só nos resta pegar a vassoura em capim e varrer o que deixamos estragar.

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de KARIM MANJRA EM UNSPLASH por Pixrl, URL: https://unsplash.com/@karim_manjra

VIVENDO E APRENDENDO

Troquei a rabinha por um tacho

Meu preferido é de carne moída, com tomate e batatinha picados bem miudinhos. Uma pitada de pimenta do reino, sem queijo e azeitona. Menos frito, casquinha clara, sem aquele gostinho amargo por ter ficado um tiquinho a mais no óleo.

Tanto faz se o acompanhamento for Coca, Fanta ou Guaraná Mineiro. Pastel é uma gostosura que me acompanha desde criança, década de oitenta, quando seguia meu pai até o armazém do Sílvio. Lá ele tomava sua pinga. Lá a gente comprava mantimentos. Lá eu comia pastel. Comia também na merenda da escola. Um dia pastel. No outro, bolo. Minha mãe foi zelosa.

Um dia, depois de ganhar de meu pai o pastel, queimei o pé num toco de cigarro que estava na calçada do armazém. Choro molhado. Garganta apertada. E isso atrapalha menino comer pastel? De jeito nenhum!

Meu pai aposentou cedo, antes dos quarenta anos. Tinha o coração adoecido e um cômodo comercial esperando ser alugado. Então, para complementar a renda, lá abrimos um boteco. Até minha mãe aprender a fazer salgados, revendemos aqueles feitos pela Dona Maria, nossa vizinha e salgadeira.

Minha mãe ficou orgulhosa por tê-lo comprado, juntando um dinheirinho aqui e outro ali: um cilindro novo, parafusado na mesa de madeira que veio da roça, na mudança para a cidade grande.

Uma carretilha cortava e dava forma. O de queijo meia cura, quadrado. Meia lua o de carne moída refogada com cebola, alho, pimenta verde e do reino. A batatinha, cozida separadamente, colocada por último finalizando o recheio a ser embalado na massa de farinha de trigo, sal, óleo e uma colherinha de pinga. Essa dava o pipocado do pastel. Alguns anos depois, minha mãe incrementou a receita ao pôr um dedinho de pó Royal. Quem gosta de cozinhar vive inventando moda, não é mesmo?!

Lenço na cabeça, avental, unhas bem cortadas. Lembro-me de suas mãos sovando a massa, salpicando farinha na mesa e abrindo-a no cilindro num vai e vem repetido muitas vezes. Em cada passada, uma giradinha nos parafusos para chegar na espessura ideal, fina. Um e outro encharcavam por um furo inesperado na massa fina.

Óleo quente na rabinha que só acomodava dois pasteis por vez – ela ficava mais apertadinha enquanto os danadinhos iam crescendo em bolhas saborosas. Trocamos a rabinha por um tacho. Agora, o trabalho rendia. Fritávamos muitos! Uma felicidade para quem queria sair dali, rapidinho, e se empanturrar comendo três numa sentada só. Era eu.

O recheio mais gostoso, marcado na memória afetiva desde a infância, se faz com poucos ingredientes, mesmo que sejam apenas o tempero de casa, tomates e batatas picadinhas a serem misturados na carne moída. Não há toco de cigarro aceso ou óleo quente capazes de queimar essa lembrança ou deixa-la com gosto amargo.

Há espaços vazios que a gente passa uma vida esperando alguém ocupá-los quando deveríamos, corajosamente, enchê-los até a tampa com nossa presença. Não é egoísmo. É porque eles não foram feitos para inquilinos.

O dinheiro compra o cilindro, a carretilha, o tacho e todos os ingredientes para fazermos os pasteis. E de que adianta tudo isso sem atitude de aprender a fazê-los? A gente cresce e pipoca quando mudamos a receita pondo uma pitada de pó Royal e sovando a massa.

Os dias – esses parafusos – vão apertando o cilindro do tempo e, nesse vai e vem, refinam a gente. E isso não é um jeito diferente de conceituar maturidade? É assim que crescemos em bolhas saborosas.

Troquei minha rabinha por um tacho. Vou dar mais espaço às pessoas danadinhas crescerem na minha vida. Assim como fiz com os pastéis, estou deixando de lado as encharcadas. Não é egoísmo. Óleo em excesso faz mal à saúde.

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de LOREN GU EM UNSPLASH por Pixrl, URL: https://unsplash.com/@lorengu

VIVENDO E APRENDENDO

Panela de ferro

Pusemos tudo num caminhão e saímos de lá. Não sei o que ficou para trás, mas ela veio junto: uma panela de ferro. Preta. Sem cabo em madeira. Sem tampa. E, por várias vezes, foi nossa forma de bolo.

Com ela, vieram a bolinha – nossa cachorra – uma meia dúzia de móveis em madeira, colchões de palha, nenhum sofá, nenhuma geladeira, tampouco uma televisão. À essa mudança se juntaram cinco corações. Três despretensiosos  – o meu e de minhas duas irmãs – e outros dois muito apertados pelo, talvez, medo da cidade grande. O da minha mãe, por certo mais confiante e seguro, pois estaria lado a lado ao de minha avó e de alguns irmãos os quais já moravam em Uberlândia. O de meu pai, nem tanto. Homem da roça, longe de sua família e, agora, daquilo que sempre foi sua lida.

Bolo de fubá, assado na panela de ferro, em banho maria, num fogão a lenha improvisado com dois tijolos de barro e gravetos catados em nosso quintal. Um tabuleiro cheio de brasa, recortado a partir de uma lata vazia de tinta Coral, servia de tampa e garantia o calor para corar e criar uma casquinha morena, crocante, um cadinho amarga por ter passado do ponto. Cheiro e sabor que enchiam a casa, fartavam a vida. O café, esquentado, transbordava o aconchego e amor daquelas tardes. Até hoje gosto de uma quitandinha após o almoço.

Um dia a gente muda. Em outro, viaja. Fui daqueles de não viajar sem fazer uma planilha em Excel da combinação das roupas levadas na mala. No meu próximo dia, espero ter poucas coisas, o suficiente para dispensar um caminhão. Não vou gastar com frete. Vou abrir bem o coração a fim de caber tudo dentro dele.

Quero manter a despretensão de uma criança que não sabe ao certo onde será a próxima parada. Gastei mais tempo planejando do que curtindo a viagem. Na rodovia, meus resmungos pela poeira e buracos já sobressaíram a alegria do entardecer que batia na janela do carro, tornaram enjoada a baladinha gostosa no rádio, esquentaram o friozinho do ar condicionado e atrapalharam o cochilo da companhia ao lado.

O cheiro, o sabor, o aconchego e o amor das tardes – e até de noites e dias inteiros – que fartam a nossa vida, só fazem sentido se compartilhados entre pessoas em que o respeito, o carinho e a dedicação queimam como brasa. Fora isso, o gosto será de queimado, passado do ponto.

Quem quer fazer, faz. Gente assim não justifica, não deixa de comer bolo de fubá com café por não ter o tabuleiro, a forma e fogão a gás. É gente que pula fora. Afinal, sabe que o banho maria, inicialmente inofensivo e relaxante, assa aos poucos.

Uma panela de ferro, preta, sem tampa, sem cabo em madeira é tão valiosa e singular quanto uma panela branca, com tampa e cabo. Se isso vale para panelas, seria óbvio reforçar o quanto vale para cachorro e gente? Portanto, não merecem ser deixados para trás, de modo que sejam catados como gravetos secos a serem jogados ao fogo. São 22h49. Não tenho bolo de fubá. Café tiraria meu sono. Tomarei água de coco.

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de TIKKHO MACIEL EM UNSPLASH por Pixrl, URL: https://unsplash.com/@tikkho

VIVENDO E APRENDENDO

Sorvete de nata

Aos domingos, após o almoço, andávamos a pé por quase dez quarteirões para chegar à casa da mulher dos braços de carne moída. Na casa ainda moravam três de seus 13 filhos, a tia Marta, tio Antônio e a tia Sílvia – viúva que decidiu adotar uma filha, a Abadia, minha prima.

Maria Augusta, minha avó, viúva e mãe de minha mãe, aceitava a vida; e a vida lhe aceitava com seus cabelos em coque, muitos fios brancos, crespos e fora do lugar; vestido em tom escuro, chinelos macios e em couro nos pés, pele branca judiada pelo Sol e pelos quase oitenta anos que levemente curvaram suas costas. Baixinha – na voz e tamanho – poucas palavras, passos vagarosos, olhar sorridente, coração acolhedor – como toda avó deveria ser.

Talvez tenha sido num desses domingos, enquanto ela me perguntava a respeito do que comemos no almoço, que disse a ela o quanto seus braços pareciam carne moída. Para uma figura angelical como as avós, um sorriso afável veio como resposta a uma criança de seis anos sem a pretensão de ofendê-la. Afinal, sabia que era sobre as manchas vermelhas e algumas até roxas, salpicadas em sua pele fina e frágil, típicas de pessoas da sua idade.

Um suave aceno de mão e uma delicada piscada de olhos da tia Marta me chamavam a atenção para o momento mais saboroso do domingo que, na casa da minha avó, tinha gosto de nata em vez de carne moída.

Ela me levava até a venda do tio Antônio. Pedia para eu ficar escondido de traz de um balcão, ficar caladinho e quietinho. Lá de baixo eu via aquela mulher esguia, de cabelos claros, branca, tão carinhosa, levantar a porta do freezer e tirar de dentro uma lata redonda. Pegava um copo americano e uma colher. Destampava a lata, pegava a colher e enchia o copo com um creme branco – entregue a mim por suas mãos ternas. Só então abria a boca para colocar uma boa porção de sorvete, sabor nata. Discreta, me pedia para não contar a ninguém e só sair do esconderijo quando eu terminasse de tomar, tudo. E assim eu fazia por ser obediente.

Um sorriso afável nos olhos tem um poder transformador quando adultos pretensiosos moem nossa carne com seus comentários ofensivos.

Podemos refrescar a vida de muita gente com sorvete, mas, também, com discrição, sutileza, zelo e, até, com um simples aceno de mão ou piscada de olhos.

Algumas lembranças, especialmente doces, merecem ser retiradas da lata nas tardes de domingo e saboreadas em grandes porções. As salgadas, talvez devam mesmo ficar dentro do freezer.

Quando os dias forem quentes, daqueles que judiam a pele, é inteligente ficar quietinho, caladinho. Se for para dizer algo que seja do tamanho da minha avó.

Inevitavelmente o tempo dobrará nossas costas e trará alguns cabelos brancos, difíceis de serem colocados no lugar. Nem por isso, deixaremos de calçar nosso chinelinho e andar vagarosamente por dez ou mais quarteirões para encontrar quem, gentilmente, nos recebe com um coração acolhedor.

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de PTMP EM UNSPLASH por Pixrl, URL: https://unsplash.com/@ladysaturday

VIVENDO E APRENDENDO

Prefiro o campinho a uma vida asfaltada

Das coisas que eu mais gostava de fazer com minha bicicleta era pedalar no campinho – um quarteirão inteiro sem casas onde as partidas de futebol aconteciam aos domingos. Entre segunda e sexta era meu universo particular – mesmo que outros meninos estivessem por lá.

Eu sempre fui muito imaginativo, gostava de desenhar e criar histórias num pedaço de “papel de pão”, para os personagens e super-herois que eu via na TV. Nas padarias, mercearias e armazéns, usavam esse papel para embalar o pão. De cor escura, meio cinza esverdeado; porém macio e aconchegante para a caneta e os traços que eu fazia e brincava.

Minhas histórias sempre tinham uma máquina do tempo. E nas pedaladas no campinho a minha bicicleta se transformava nessa máquina. Era um “terrenão”, com mato, terra, areia, subidas e descidas. O local perfeito para ir até as crateras da Lua, visitar Marte ou apenas viajar no tempo, sem parar num local e data específicos.

De olhos fechados, virando o guidão para a direita ou esquerda, ia eu pelo túnel do tempo imaginado na minha cabeça de criança. Sentia os balanços e baculejos das rodas nos montes de terra. Também de vez em quando vinham rajadas de vento e poeira trazidas pelos redemoinhos que levantavam do chão as folhas das árvores e papel. Para mim, eram rajadas do efeito por estar no túnel do tempo. Não tinha nada melhor.

Naquela época eu estudava à tarde, das 13h às 17h. Então, boa parte das manhãs eu dedicava a pedalar para o futuro até ouvir o grito da minha mãe me trazendo de volta à Terra, justamente no momento do banho para ir à escola onde eu sempre chegava atrasado.

Uma vez prometi à Dona Laíde, supervisora da escola e minha vizinha, não chegar atrasado nunca mais. Não me lembro agora se cumpri essa promessa.

A máquina do tempo não me levava até a escola. Quem me conduzia pela mão era minha irmã, a Fátima. À tarde, eu voltava segurando a mão firme e áspera da minha mãe. Áspera porque elas, as mãos, trabalhavam arduamente na lavagem de roupas. Jeito de conseguir alguns “trocados” para melhorar nossa casa e ajudar o meu pai a “acudir” nas despesas.

Na terceira série, continuei a estudar no período da tarde, mas entre 15h e 19h. Isso me dava mais tempo para fazer viagens mais longas e emocionantes pelo campinho e fora dele – quando deveria comprar as “misturas” do almoço, verduras cultivadas por um vizinho, no quintal dele, tudo orgânico. Quiabo e couve se revezavam durante os sete dias da semana. E, em muitos dias, só a couve se misturava ao arroz.

Logo após o almoço, rumávamos à compra de mexericas – eu e a Fátima, minha irmã do meio. Grandes, doces, caudalosas. Uma gostosura só! Andar de bicicleta no campinho e chupar mexericas. Ir à escola não era tão saboroso assim.

Não nos damos conta que trocamos o campinho, aquele lugar tão gostoso onde livremente andávamos de bicicleta de segunda a sexta, por salas fechadas, pequenas, paredes cinzas, que achatam e sufocam a emoção da torcida das partidas de futebol aos domingos. A gente cresce e entulha nosso universo particular, nosso campinho – nossa vida – com atividades e pessoas empoeiradas, opacas, cheias de folhas secas.

É sábio saber que temos capacidade para transformar um pedaço de papel cinza com histórias mais felizes do que aquelas vividas na sala apertada que um dia foi nosso campinho. Tem gente que gasta o tempo fazendo promessas ou justificando o atraso. Muitas, usam o tempo surrando as mãos para ganhar seus trocados, erguer a vida. Essas, seguram firmemente a caneta nas mãos, traçam, desenham e criam o enredo, sobem na bicicleta, guiam a máquina do tempo, põem força nas pernas e pedalam para viver o final feliz, ocupando o lugar de herói. Elas têm sede de saborear a doçura das mexericas caudalosas, sem esquecer a riqueza da couve e do quiabo do dia a dia.

Eu ainda sou dessas pessoas que prefiro o campinho com sua vastidão. A lisura de uma vida asfaltada não nos permite o toque do mato, o chegar das folhas secas levantadas do chão pelo vento, nem de se alegrar com os balanços e baculejos das rodas da bicicleta nos montes de terra e areia.

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de ALEXANDRU TUDORACHE EM UNSPLASH por Pixrl, URL: https://unsplash.com/@andurache

VIVENDO E APRENDENDO

Sem rodinhas

Ganhei de meu pai, aos seis anos, em 1.980, a minha primeira bicicleta. Pequena, de segunda mão e de cor verde. Segunda mão porque ela já tinha sido de outra criança. E agora, antes de redigir qualquer outra coisa, penso: quem foi o seu primeiro dono ou dona? Quem foi, o menino ou a menina, que “estreou” a minha bicicleta? Será que soube aproveitá-la como eu a aproveitei? Se bem que cada pessoa aproveita de um jeito. E isso não quer dizer que o meu jeito é melhor do que o jeito de qualquer outra pessoa. Muito pelo contrário. O jeito é único, singular, pessoal. E o verbo aproveitar não significa, no sentido pejorativo, tirar proveito ou lograr. O aproveitar vem de proveitoso, que dá prazer, traz felicidade.

Para meu pai, acredito que foi um dos dias mais felizes de sua vida. Era nítida a felicidade em seu rosto moreno, queimado pelo sol enquanto trabalhava na lavoura e na construção civil. Homem magro, miúdo, franzino, calado. Um silêncio nos lábios e nos olhos nostálgicos que se resguardavam enquanto ouvia suas modas no rádio. Talvez por isso tivera seu problema de coração agravado. Naquela época trocava-se a palavra doença por problema. Como se fosse um defeito numa máquina ou uma equação a ser resolvida.

E para ele a bicicleta também tinha uma simbologia muito forte, além, é claro, de ser o seu transporte para o trabalho, melhor: para qualquer lugar. Para homens como o meu pai, a bicicleta tinha muito mais uma função social e de lazer do que de transporte. Quem tinha uma “Monark Barra Forte” possuia algo muito precioso. A minha também era uma Monark e, depois que busquei no Google, descobri que era modelo Monareta Aro 14.

Foi num sábado, logo após o almoço. Meu pai me chamou para sair com ele. Não me disse aonde iríamos. Subimos o morro para atravessar a BR que dividia nosso bairro e aquele onde ele comprou a minha bicicleta.

Entramos por uma porta. Um silêncio. Uma entrega do dono da oficina nas mãos do meu pai. Lá estava ela: verdinha, grande e cheia de aventuras. Grande para meus olhos pequenos. Cheia de aventuras porque para criança bicicleta significa liberdade.

Saímos de lá para nossa casa. Eu empurrava a bicicleta e ela me empurrava. Hora de voltar a subir o morro da BR. Muito esforço e alguns escorregões na terra seca, batida, chão duro. Morro subido. BR atravessada.

Avistei nossa casa que ficava numa esquina em frente a um quarteirão inteiro: um vazio de casas e um cheio de possibilidades. Era o famoso campinho: um lugar onde os adultos jogavam futebol nos fins de semana. Claro que nós, as crianças, também aproveitávamos o campinho, mas como já disse: cada um do seu jeito.

Atravessada a BR, agora bastava descer o outro morro. E lá fui eu! Desci de uma vez só, num supetão, sem breque. Nesse tempo um mineiro não dizia freada. A gente pisava no breque. Um susto e uma risada. A última do meu pai, o susto foi meu. Mas quero voltar a falar desse assunto mais à frente. Porque agora quero contar das aventuras do Zé e a sua bicicleta.

Os dias não foram fáceis e para ser bem honesto, não foram sem dores. Machucados nos joelhos eram sinônimos de “salim mamãe, salim”. Minha mãe era daquelas mulheronas fortes, duronas, impetuosas, garradeira – do verbo agarrar. Não dava mole. E como mulher de roça que foi, aprendeu suas próprias receitas para curar qualquer “ralado”. O sal de cozinha com uma pitada de água ou saliva se combinavam numa dessas misturas curandeiras, seu mertiolate natural.

Assim, para cada um dos meus tombos, ela preparava e colocava nos meus machucados essa solução dolorosa e, ao mesmo tempo, aliviante. Alguns dizem que o uso do sal nos ferimentos vem de resquícios primitivos. Os escravos ao levarem chibatadas nas costas, eram banhados com a água do mar (que tem sal) para facilitar a coagulação do sangue. Dessa forma, voltavam mais rápido ao trabalho. Também li no Google. Ah! Esse Google…

Encerrando esse assunto salgado, o fato era que assim como para os escravos, o sal me curava mais rápido para, novamente, aprender a conduzir a bicicleta.

Vai, sobe de novo! Ce num vê: os jogador de bola cai e levanta de novo e num fica chorano não. Anda sô. Dêxa de sê mole!

Essas palavras de minha mãe, sem ardor, foram mais que encorajadoras, uma solução curativa. Por isso, eu subia! Sem rodinhas, aprendi a andar de bicicleta.

Sei que em alguns momentos a gente sobe uns morros de chão duro, apisoado. Chão que machuca, morro íngreme. Depois que a gente sobre, vê algo que nos enche, nos preenche. Como não dá para ficar vendo de longe – e a gente sabe, precisa, deseja e quer ir para chegar mais perto, sentir – descemos o morro. Descemos sem brecar ou então brecamos demais. Às vezes não soltamos o breque quando se deve deixar fluir, correr solto, ir leve.

Tenho pensado nas vezes que, por medo do morro, brequei demais. Por medo não do morro de terra, mas do morro do verbo morrer.

Quando não soltamos o breque, vivemos só um “tiquinho” da emoção. Vivemos só um “cadinho” da beleza daquilo que vimos lá de cima do morro. Se não soltar, não vai sentir.

Também sei que dá para aprender a andar, viver sem as rodinhas. E penso que sem elas o aprender é mais emocionante, empolgante, aventureiro, instigante. As rodinhas são nossas muletas sobre rodas, nos impedindo de caminhar e pedalar com “as próprias pernas”.

Por vezes, queremos que alguém seja nossas rodinhas, faça as coisas por nós. Desse jeito não dá para se emocionar com a subida e descida do morro.

E com as rodinhas a gente não cai. Então, perdemos a chance de aprender com o poder curativo do sal, depois de alguns tombos. Com as rodinhas, a gente não cresce, se torna uma eterna criança que, por não cair, não sabe se levantar e seguir adiante.

Quanto à risada do meu pai por eu não ter brecado… Acredito que tenha sido o jeito dele expressar o susto de saber que seu filho estava indo, sem rodinhas, sem frear… mesmo que empurrando a bicicleta.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Imagem de Karolina Grabowska por Pixabay, URL: https://pixabay.com/pt/photos/homem-menino-mantenha-explora%C3%A7%C3%A3o-791548/