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VIVENDO E APRENDENDO

CASA

Não tiro uma vírgula do que Lena Gino narrou em seu texto, Casa arrumada. Casa não pode, de jeito nenhum, ser um “centro cirúrgico, cenário de novela”. Não tiro porque não tem jeito. A Casa é dela. Se eu tirar, desarrumo a Casa e ela perde a essência da Lena.

A casa da gente revela quem somos, nossa dinâmica. Conta como nos relacionamos com quem a compartilhamos, com quem vive nela com a gente. Sim, há também casa de uma pessoa só. E, obviamente, não deixa de ser casa por isso.

Propositalmente usei a palavra vive porque, para mim, casa é para viver. Não é só para morar.

Moradia é um espaço físico, feito do mais duro concreto, lugar objetivo, realista, frio, opaco. Casa é subjetiva, tem cor, vida e calor porque há gente nela que a constrói diariamente por meio de suas histórias, dilemas, sonhos, frustrações, alegrias, tristezas, encontros, desencontros, afetos, desafetos e outro monte de emoções, sentimentos, formas de agir e experienciar o existir – essas linhas que vão tecendo, pontinho a pontinho, o nosso enredo por aqui.

Moradia nos abriga. Casa nos nutre, revigora, dá sentido de existência, identidade e significado. Há moradias que serão sempre moradias. Nunca serão casas. Falta-lhes o coexistir, conviver, a compreensão, compaixão das pessoas as quais se percebem tão somente como moradores, habitantes.

Triste saber que há moradias gritando para serem casas.

Centro cirúrgico e cenário de novela são moradias. A gente passa por lá, mas não vive lá.

Casa é onde a gente se senta junto e assiste a novela. Onde fazemos uma prece por quem amamos, para que saia logo do centro cirúrgico e volte pra casa.

Vivi em algumas. No quarto de uma delas tinha um vitrô com grades pintadas em cor laranja, um dos modelos mais simples, com vidro canelado. Eu tinha sete anos e via, através dele durante a noite, um monstro enfurecido e seus vários braços – na verdade, apenas a sombra do balanço dos galhos do pé de limão de nosso quintal. De placa de cimento e apenas quatro cômodos: dois quartos, cozinha e banheiro. Foi lá que mais gostei de viver porque o tamanho pequeno encurtava meus passos e aproximava nossa família. Nuns dois pulos eu praticamente a cruzava de um canto a outro.

Na minha adolescência, vivemos numa moradia não acabada. Alguns vitrôs, sem vidros canelados, foram criativamente “envidraçados” com papelão. Empilhamos tijolos em outros buracos por não termos dinheiro para, sequer, comprar o vitrô. Se tornaram barricadas. Não entrava frio. Não entrava luz. Não entrava chuva. Não entrava vento.

O contrapiso esperou muitos anos até ser promovido a piso; e daqueles de um amarelo só. A cobertura, sem laje, em telhas de segunda mão ou como dizem em lojas de automóveis: seminovas.

Para se tornar casa, a moradia precisa ser acabada?

Lembro, neste instante, do livro Que ninguém nos ouça de Leila Ferreira e Cris Guerra – autoras nas quais me inspiro. Num dos e-mails trocados entre elas, a Leila comenta a respeito de casa: “…casa integra, casa enraíza, casa faz pertencer…”

Se por um lado não entrava nada na moradia não acabada, por outro também não saia. Não saia o afeto da nossa família, o aconchego, o cheiro do café coado no coador de pano e do alho na banha refogando o arroz, o chiado da panela de pressão enquanto cozinhava preguiçosamente o feijão, a música sertaneja tocada no rádio do meu pai desde o amanhecer até o fim do dia, o estalar da brasa assando o bolo de fubá. Estava tudo enraizado, integrado, pertencido.

O que enche uma moradia são os móveis. O que constrói uma casa é o viver, a vida vivida nela. Lena estava mesmo certa ao dizer “…eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: aqui tem vida…”

Por isso, talvez a moradia deva – metaforicamente – ser acabada, destruída para que uma casa seja erguida. Se não fizermos isso, corremos o risco de ter uma “casa de fachada”, daquelas de novela, empilhadas com o novo sofá, a cozinha mais equipada com varanda gourmet, aquele quadro na parede que nem conhecemos o artista; uma tv gigante, 4K, seis entradas HDMI e tudo conectado pela tal internet das coisas. E, aliás, das coisas mesmo. Porque gente não se conecta, não se pluga. Gente se relaciona etc. Coloco etc porque a lista seria enorme.

A gente precisa empilhar a casa é de gentileza, desde a hora que colocamos o pé do chão. Precisamos empilhar a casa com respeito a quem vivem nela e a constrói com a gente. Precisamos empilhar a casa com a capacidade de escutar através do coração, partilha, naquele olhar que silenciosamente compreende, no abraço que acolhe sem ressalvas, na amizade que não exige nada em troca. Precisamos empilhar a casa com mais sorrisos despretensiosos, os mesmos de quando tínhamos sete anos de idade. E, sem hipocrisia, o bom mesmo é quando a gente consegue empilhar tudo numa casa só: nosso ter e ser. É poder viver e morar na justa medida!

Tem gente muito mais feliz morando num barraco onde é possível cruzá-lo de um canto a outro num pulo, do que quem mora em mansão e não consegue – ao menos uma vez por mês – entrar em alguns cômodos. O contrário também é verdadeiro. Viver e morar é isto. Eu, contudo, ainda prefiro viver.

CRÉDITO DA IMAGEM

Foto que tirei de uma das ruas de Tiradentes, cidade singular de casas e gente cheias de vida.