Corri de um lado para o outro da sala, cai, desci em espiral abraçado com várias pessoas nunca vistas antes, olhei fixamente nos olhos de outras tantas enquanto dançávamos. Sim, fiquei um pouco desconcertado. Coisa de mineiro, será?
Até inventei uma dança só minha com meus movimentos pouco flexíveis pelas “juntas enferrujadas” deste senhor a beira dos quarenta e seis anos de idade. Porém, sem falsa modéstia, com o coração de um “mininu” a brincar no recreio da escola, correr depois de tocar a campainha da casa dos outros ou assistir a um capítulo da série Once upon a time.
Pois é, entrei num curso de teatro. E quer saber? Está sendo desconstrutiva – respondi ao professor a respeito da primeira aula.
Poderia ter sido mais, se não fosse a calça jeans atrapalhando um pouco e me matando de calor. Precisei dobrar as barras e beber um gole de água pra acompanhar a moçada no auge dos seus vinte e poucos anos. Gente do bem, agradável, acolhedora. Aprendi vivendo, na próxima aula irei de short.
Desconstrução. Escolhi enquanto estava deitado no escuro – retomando o ritmo da respiração – e olhando o exaustor do teto a girar “devagarzim”, infinitamente mais lento que o giro do mundo lá fora e da minha cabeça. Essa, coitada, antecipava as inúmeras leituras a serem feitas acerca de teatro, as possíveis peças para encenar, os exercícios preparatórios das aulas seguintes, entregas dos próximos seis meses de duração do curso e o teste final.
Enfim, eu estava meticulosamente colocando tudo numa planilha mental, organizando cada “coisinha” no seu devido lugar. Me senti aliviado pela conquista estrutural! O pensamento funciona assim para quem, como eu, foi forjado por décadas na vida corporativa.
Luzes acessas. Me aprumei pra ir ticando a fala do professor com as “coisinhas que eu havia colocado nos seus devidos lugares”. De repente, nada. O vazio. Não tiquei nada!
As próximas aulas seguiriam conforme o desenvolvimento da turma, falou pausadamente nosso orientador.
E o teste final? Seria minha indagação. Não precisei fazê-la, pois a resposta veio na sequência: também seria conforme o desenvolvimento da turma.
Não tinha nada errado ali. Não faltava planejamento e as coisas estavam onde deveriam estar. O plano seria construído conforme a capacidade da matéria prima mais valiosa: as pessoas e o talento delas. Quer coisa mais bem planejada, humana e respeitosa?
Na minha concretude de pensamento corporativo, só consegui me lembrar da Vida líquida de Baumam. Então, como dizemos aqui em Minas, enfiei a viola no saco e fui embora. Enquanto caminhava pelos seis quarteirões até chegar à minha casa, fiz o que deveria ser feito: refleti e fui deixando os passos diluírem e desmontarem minhas pecinhas da vida “esquematizadinha”.
Desconstruir é isso mesmo: desmontar as pecinhas e misturá-las pra criar outra coisa, sem, no entanto, eliminar as experiências e aprendizados anteriores. Afinal, são ricas referências pra gente fazer diferente: nem melhor ou pior, nem certo ou errado. Só diferente.
Outra lembrança: a metáfora da lagarta – figurinha batida em palestras – pra exemplificar o processo de transformação, mudança e evolução: feia, gosmenta e rastejante se transforma numa linda, colorida e livre borboleta.
Cortella, em uma de suas palestras deliciosas, disse: nem sempre evoluir é algo, digamos, interessante. Quando, por exemplo, o médico nos informa: o paciente evoluiu para óbito.
No caso de morte, mesmo a pessoa não tendo sido lá “boa gente”, é comum escutarmos: “fulano descansou, partiu dessa pra melhor ou foi morar na trinca dos anjinhos de Nosso Senhor”. Se for assim, evoluir nos leva a uma fase nova, descansados e renovados.
Por outro lado, quem de nós quer mesmo partir dessa pra melhor? Fico aqui pensando se a lagarta está tão a fim de virar borboleta. A coitada fica lá, presa num casulo por quase um ano, espremida e apertada até conseguir sair pra viver como borboleta, tão somente, trinta dias. Vale o esforço?
Vale! A gente, assim como a lagarta, sempre quer passar dessa pra melhor. Não no sentido de precisar morrer, mas de aprender mais, crescer, alcançar mais sabedoria, colecionar histórias e compartilhá-las. Ser mais leve pra flutuar em vez de se arrastar. Podemos fazer isso “vivinhos da silva” – mais uma expressão da adorável Minas Gerais.
Desconstruir leva tempo, bem mais daqueles nove meses da lagarta, pois exige humildade, consciência, um querer profundo, atitude e ação, desapego, um constante recomeço, passar pelo fogo. Rubem Alves foi quem narrou no seu texto sobre o processo do milho – duro e cascudo – se transformar em pipoca. Só há pipoca, macia e saborosa, porque o milho passou pelo fogo.
Há quem dirá: a desconstrução é dolorosa. Talvez, até a comparem com a autoflagelação da águia que, para se manter vigorosa, arranca pena por pena e ainda bate o bico velho nas rochas até quebrá-lo. Ah, é muita dor!
A gente pode evoluir sem pressa, sem arrancar os cabelos já que não temos pena. Sem quebrar “a cara” já que não temos bico.
A gente pode evoluir com mais alegria por saber que existirão logo a frente mais jardins e flores, dias mais coloridos em vez da escuridão do casulo.
Estou contando os dias para a próxima aula e o retorno pra casa, quando poderei desconstruir mais pecinhas e, quem sabe, comer pipoca enquanto assisto a mais um capítulo de Once upon a time. Estou encantado com a evolução da Regina, a Rainha Má.
CRÉDITO DA IMAGEM
Imagem de SEPTIYAN SOEMANTRI EM PIXABAY, URL: https://pixabay.com/pt/users/septiyan-1511088/