VIVENDO E APRENDENDO

Sorvete de nata

Aos domingos, após o almoço, andávamos a pé por quase dez quarteirões para chegar à casa da mulher dos braços de carne moída. Na casa ainda moravam três de seus 13 filhos, a tia Marta, tio Antônio e a tia Sílvia – viúva que decidiu adotar uma filha, a Abadia, minha prima.

Maria Augusta, minha avó, viúva e mãe de minha mãe, aceitava a vida; e a vida lhe aceitava com seus cabelos em coque, muitos fios brancos, crespos e fora do lugar; vestido em tom escuro, chinelos macios e em couro nos pés, pele branca judiada pelo Sol e pelos quase oitenta anos que levemente curvaram suas costas. Baixinha – na voz e tamanho – poucas palavras, passos vagarosos, olhar sorridente, coração acolhedor – como toda avó deveria ser.

Talvez tenha sido num desses domingos, enquanto ela me perguntava a respeito do que comemos no almoço, que disse a ela o quanto seus braços pareciam carne moída. Para uma figura angelical como as avós, um sorriso afável veio como resposta a uma criança de seis anos sem a pretensão de ofendê-la. Afinal, sabia que era sobre as manchas vermelhas e algumas até roxas, salpicadas em sua pele fina e frágil, típicas de pessoas da sua idade.

Um suave aceno de mão e uma delicada piscada de olhos da tia Marta me chamavam a atenção para o momento mais saboroso do domingo que, na casa da minha avó, tinha gosto de nata em vez de carne moída.

Ela me levava até a venda do tio Antônio. Pedia para eu ficar escondido de traz de um balcão, ficar caladinho e quietinho. Lá de baixo eu via aquela mulher esguia, de cabelos claros, branca, tão carinhosa, levantar a porta do freezer e tirar de dentro uma lata redonda. Pegava um copo americano e uma colher. Destampava a lata, pegava a colher e enchia o copo com um creme branco – entregue a mim por suas mãos ternas. Só então abria a boca para colocar uma boa porção de sorvete, sabor nata. Discreta, me pedia para não contar a ninguém e só sair do esconderijo quando eu terminasse de tomar, tudo. E assim eu fazia por ser obediente.

Um sorriso afável nos olhos tem um poder transformador quando adultos pretensiosos moem nossa carne com seus comentários ofensivos.

Podemos refrescar a vida de muita gente com sorvete, mas, também, com discrição, sutileza, zelo e, até, com um simples aceno de mão ou piscada de olhos.

Algumas lembranças, especialmente doces, merecem ser retiradas da lata nas tardes de domingo e saboreadas em grandes porções. As salgadas, talvez devam mesmo ficar dentro do freezer.

Quando os dias forem quentes, daqueles que judiam a pele, é inteligente ficar quietinho, caladinho. Se for para dizer algo que seja do tamanho da minha avó.

Inevitavelmente o tempo dobrará nossas costas e trará alguns cabelos brancos, difíceis de serem colocados no lugar. Nem por isso, deixaremos de calçar nosso chinelinho e andar vagarosamente por dez ou mais quarteirões para encontrar quem, gentilmente, nos recebe com um coração acolhedor.

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de PTMP EM UNSPLASH por Pixrl, URL: https://unsplash.com/@ladysaturday

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