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VIVENDO E APRENDENDO

Prefiro o campinho a uma vida asfaltada

Das coisas que eu mais gostava de fazer com minha bicicleta era pedalar no campinho – um quarteirão inteiro sem casas onde as partidas de futebol aconteciam aos domingos. Entre segunda e sexta era meu universo particular – mesmo que outros meninos estivessem por lá.

Eu sempre fui muito imaginativo, gostava de desenhar e criar histórias num pedaço de “papel de pão”, para os personagens e super-herois que eu via na TV. Nas padarias, mercearias e armazéns, usavam esse papel para embalar o pão. De cor escura, meio cinza esverdeado; porém macio e aconchegante para a caneta e os traços que eu fazia e brincava.

Minhas histórias sempre tinham uma máquina do tempo. E nas pedaladas no campinho a minha bicicleta se transformava nessa máquina. Era um “terrenão”, com mato, terra, areia, subidas e descidas. O local perfeito para ir até as crateras da Lua, visitar Marte ou apenas viajar no tempo, sem parar num local e data específicos.

De olhos fechados, virando o guidão para a direita ou esquerda, ia eu pelo túnel do tempo imaginado na minha cabeça de criança. Sentia os balanços e baculejos das rodas nos montes de terra. Também de vez em quando vinham rajadas de vento e poeira trazidas pelos redemoinhos que levantavam do chão as folhas das árvores e papel. Para mim, eram rajadas do efeito por estar no túnel do tempo. Não tinha nada melhor.

Naquela época eu estudava à tarde, das 13h às 17h. Então, boa parte das manhãs eu dedicava a pedalar para o futuro até ouvir o grito da minha mãe me trazendo de volta à Terra, justamente no momento do banho para ir à escola onde eu sempre chegava atrasado.

Uma vez prometi à Dona Laíde, supervisora da escola e minha vizinha, não chegar atrasado nunca mais. Não me lembro agora se cumpri essa promessa.

A máquina do tempo não me levava até a escola. Quem me conduzia pela mão era minha irmã, a Fátima. À tarde, eu voltava segurando a mão firme e áspera da minha mãe. Áspera porque elas, as mãos, trabalhavam arduamente na lavagem de roupas. Jeito de conseguir alguns “trocados” para melhorar nossa casa e ajudar o meu pai a “acudir” nas despesas.

Na terceira série, continuei a estudar no período da tarde, mas entre 15h e 19h. Isso me dava mais tempo para fazer viagens mais longas e emocionantes pelo campinho e fora dele – quando deveria comprar as “misturas” do almoço, verduras cultivadas por um vizinho, no quintal dele, tudo orgânico. Quiabo e couve se revezavam durante os sete dias da semana. E, em muitos dias, só a couve se misturava ao arroz.

Logo após o almoço, rumávamos à compra de mexericas – eu e a Fátima, minha irmã do meio. Grandes, doces, caudalosas. Uma gostosura só! Andar de bicicleta no campinho e chupar mexericas. Ir à escola não era tão saboroso assim.

Não nos damos conta que trocamos o campinho, aquele lugar tão gostoso onde livremente andávamos de bicicleta de segunda a sexta, por salas fechadas, pequenas, paredes cinzas, que achatam e sufocam a emoção da torcida das partidas de futebol aos domingos. A gente cresce e entulha nosso universo particular, nosso campinho – nossa vida – com atividades e pessoas empoeiradas, opacas, cheias de folhas secas.

É sábio saber que temos capacidade para transformar um pedaço de papel cinza com histórias mais felizes do que aquelas vividas na sala apertada que um dia foi nosso campinho. Tem gente que gasta o tempo fazendo promessas ou justificando o atraso. Muitas, usam o tempo surrando as mãos para ganhar seus trocados, erguer a vida. Essas, seguram firmemente a caneta nas mãos, traçam, desenham e criam o enredo, sobem na bicicleta, guiam a máquina do tempo, põem força nas pernas e pedalam para viver o final feliz, ocupando o lugar de herói. Elas têm sede de saborear a doçura das mexericas caudalosas, sem esquecer a riqueza da couve e do quiabo do dia a dia.

Eu ainda sou dessas pessoas que prefiro o campinho com sua vastidão. A lisura de uma vida asfaltada não nos permite o toque do mato, o chegar das folhas secas levantadas do chão pelo vento, nem de se alegrar com os balanços e baculejos das rodas da bicicleta nos montes de terra e areia.

CRÉDITO DA IMAGEM

Imagem de ALEXANDRU TUDORACHE EM UNSPLASH por Pixrl, URL: https://unsplash.com/@andurache

VIVENDO E APRENDENDO

Sem rodinhas

Ganhei de meu pai, aos seis anos, em 1.980, a minha primeira bicicleta. Pequena, de segunda mão e de cor verde. Segunda mão porque ela já tinha sido de outra criança. E agora, antes de redigir qualquer outra coisa, penso: quem foi o seu primeiro dono ou dona? Quem foi, o menino ou a menina, que “estreou” a minha bicicleta? Será que soube aproveitá-la como eu a aproveitei? Se bem que cada pessoa aproveita de um jeito. E isso não quer dizer que o meu jeito é melhor do que o jeito de qualquer outra pessoa. Muito pelo contrário. O jeito é único, singular, pessoal. E o verbo aproveitar não significa, no sentido pejorativo, tirar proveito ou lograr. O aproveitar vem de proveitoso, que dá prazer, traz felicidade.

Para meu pai, acredito que foi um dos dias mais felizes de sua vida. Era nítida a felicidade em seu rosto moreno, queimado pelo sol enquanto trabalhava na lavoura e na construção civil. Homem magro, miúdo, franzino, calado. Um silêncio nos lábios e nos olhos nostálgicos que se resguardavam enquanto ouvia suas modas no rádio. Talvez por isso tivera seu problema de coração agravado. Naquela época trocava-se a palavra doença por problema. Como se fosse um defeito numa máquina ou uma equação a ser resolvida.

E para ele a bicicleta também tinha uma simbologia muito forte, além, é claro, de ser o seu transporte para o trabalho, melhor: para qualquer lugar. Para homens como o meu pai, a bicicleta tinha muito mais uma função social e de lazer do que de transporte. Quem tinha uma “Monark Barra Forte” possuia algo muito precioso. A minha também era uma Monark e, depois que busquei no Google, descobri que era modelo Monareta Aro 14.

Foi num sábado, logo após o almoço. Meu pai me chamou para sair com ele. Não me disse aonde iríamos. Subimos o morro para atravessar a BR que dividia nosso bairro e aquele onde ele comprou a minha bicicleta.

Entramos por uma porta. Um silêncio. Uma entrega do dono da oficina nas mãos do meu pai. Lá estava ela: verdinha, grande e cheia de aventuras. Grande para meus olhos pequenos. Cheia de aventuras porque para criança bicicleta significa liberdade.

Saímos de lá para nossa casa. Eu empurrava a bicicleta e ela me empurrava. Hora de voltar a subir o morro da BR. Muito esforço e alguns escorregões na terra seca, batida, chão duro. Morro subido. BR atravessada.

Avistei nossa casa que ficava numa esquina em frente a um quarteirão inteiro: um vazio de casas e um cheio de possibilidades. Era o famoso campinho: um lugar onde os adultos jogavam futebol nos fins de semana. Claro que nós, as crianças, também aproveitávamos o campinho, mas como já disse: cada um do seu jeito.

Atravessada a BR, agora bastava descer o outro morro. E lá fui eu! Desci de uma vez só, num supetão, sem breque. Nesse tempo um mineiro não dizia freada. A gente pisava no breque. Um susto e uma risada. A última do meu pai, o susto foi meu. Mas quero voltar a falar desse assunto mais à frente. Porque agora quero contar das aventuras do Zé e a sua bicicleta.

Os dias não foram fáceis e para ser bem honesto, não foram sem dores. Machucados nos joelhos eram sinônimos de “salim mamãe, salim”. Minha mãe era daquelas mulheronas fortes, duronas, impetuosas, garradeira – do verbo agarrar. Não dava mole. E como mulher de roça que foi, aprendeu suas próprias receitas para curar qualquer “ralado”. O sal de cozinha com uma pitada de água ou saliva se combinavam numa dessas misturas curandeiras, seu mertiolate natural.

Assim, para cada um dos meus tombos, ela preparava e colocava nos meus machucados essa solução dolorosa e, ao mesmo tempo, aliviante. Alguns dizem que o uso do sal nos ferimentos vem de resquícios primitivos. Os escravos ao levarem chibatadas nas costas, eram banhados com a água do mar (que tem sal) para facilitar a coagulação do sangue. Dessa forma, voltavam mais rápido ao trabalho. Também li no Google. Ah! Esse Google…

Encerrando esse assunto salgado, o fato era que assim como para os escravos, o sal me curava mais rápido para, novamente, aprender a conduzir a bicicleta.

Vai, sobe de novo! Ce num vê: os jogador de bola cai e levanta de novo e num fica chorano não. Anda sô. Dêxa de sê mole!

Essas palavras de minha mãe, sem ardor, foram mais que encorajadoras, uma solução curativa. Por isso, eu subia! Sem rodinhas, aprendi a andar de bicicleta.

Sei que em alguns momentos a gente sobe uns morros de chão duro, apisoado. Chão que machuca, morro íngreme. Depois que a gente sobre, vê algo que nos enche, nos preenche. Como não dá para ficar vendo de longe – e a gente sabe, precisa, deseja e quer ir para chegar mais perto, sentir – descemos o morro. Descemos sem brecar ou então brecamos demais. Às vezes não soltamos o breque quando se deve deixar fluir, correr solto, ir leve.

Tenho pensado nas vezes que, por medo do morro, brequei demais. Por medo não do morro de terra, mas do morro do verbo morrer.

Quando não soltamos o breque, vivemos só um “tiquinho” da emoção. Vivemos só um “cadinho” da beleza daquilo que vimos lá de cima do morro. Se não soltar, não vai sentir.

Também sei que dá para aprender a andar, viver sem as rodinhas. E penso que sem elas o aprender é mais emocionante, empolgante, aventureiro, instigante. As rodinhas são nossas muletas sobre rodas, nos impedindo de caminhar e pedalar com “as próprias pernas”.

Por vezes, queremos que alguém seja nossas rodinhas, faça as coisas por nós. Desse jeito não dá para se emocionar com a subida e descida do morro.

E com as rodinhas a gente não cai. Então, perdemos a chance de aprender com o poder curativo do sal, depois de alguns tombos. Com as rodinhas, a gente não cresce, se torna uma eterna criança que, por não cair, não sabe se levantar e seguir adiante.

Quanto à risada do meu pai por eu não ter brecado… Acredito que tenha sido o jeito dele expressar o susto de saber que seu filho estava indo, sem rodinhas, sem frear… mesmo que empurrando a bicicleta.

CRÉDITO DA IMAGEM:

Imagem de Karolina Grabowska por Pixabay, URL: https://pixabay.com/pt/photos/homem-menino-mantenha-explora%C3%A7%C3%A3o-791548/